Cruzamentos entre Ranciére e Jacotot

 

            Ranciére (2002) é um filósofo francês que eleva-se aos ombros de Jocotot, pedagogo que viveu na França no  século XVIII na França e que ganhou visibilidade  após elaborar um método de emancipação intelectual que ele  compreende enquanto única alternativa louvável para aquisição de conhecimento

     Numa curta formulação, cabe  inferir que compreender o conceito de emancipação de Ranciére  depende de  ponderar princípios e axiomas dispostos no livro "o mestre ignorante", composto pelas análises  formalizadas  das concepções pedagógicas de Jacotot. Ranciére impulsiona inúmeras reflexões, valendo-se de tradições filosóficas e, sobretudo, dos princípios que sustentam a metodologia de Jacotot como  "a inteligência é igual em todos os homens".  Jacotot defendia que  a inteligência é o elo comum   entre todos  os membros da espécie humana (Jacotot 1830: 31) e não  acreditava que o  conhecimento fosse mérito só de alguns, já que   todos podem adquirir conhecimento democraticamente e sem imperativos ou subordinações previamente estipuladas por formas de poder. O único requisito para  aquisição do saber  é a vontade de  aprender. Seu método  denominado de método de educação universal era antes de mais nada o método da vontade afinado com o preceito de que toda  alma humana é munida da capacidade de assimilar conteúdos  sozinha, sem a presença de um tutor. Sua crença assume contornos tão sólidos que uma de suas máximas se transformou em epitáfio  no cemitério de Père-Lachaise.

            Quanto ao método, este está sintetizado numa só sentença: "Conheça um livro, traga de volta todos os outros" (Jacotot 1830: X).   No entanto, é fundamental transcender as fórmulas apresentadas por Jacotot e as frases de efeito para  penetrar na sua pedagogia ou  pensamento pedagógico escondido por trás dos princípios.  Na realidade, Jacotot embora  polêmico, divergente e inovador, ele revisita uma  longa tradição filosófica  para   reivindicar a  autotomia na  aquisição de conhecimento independente da  modalidade que pertence  - leitura, geografia, música, idiomas, etc. -. As alegações  dividiam opiniões na época. Uns acreditavam que elas tinham contornos  radicais e  outros interpretavam como uma pedagogia  libertária.   Neste último caso,  protege o pressuposto que a   liberdade intelectual dos estudantes colabora para  a crença em si mesmos e  para o reconhecimento e domínio de suas   habilidades.  Utilizando  sua fórmula de "emancipação intelectual" o autor pretende apontar justamente para esta direção.

            Deste ângulo, a   emancipação é o contrário da  subserviência,  subjugo fatal da subordinação e do preconceito e  desigualdade intelectual.  Para Jacotot  quando o homem  assimila o real  valor de sua alma, instantaneamente eleva o poder de sua aptidão para qualquer modalidade  de estudo.

             Rancière argumenta que Jacotot, emprega uma pedagogia empenhada na abolição do assento sociológico da reprodução. Por isso, situa o  saber  nas linhas do “Ensino Universal”, uma vez que prescreve uma aprendizagem que atinge todos os indivíduos sem considerar padrões sociais e perfis.  O “Ensino Universal”,  do modo que   Rancière o interpreta é representado pelo professor ou mestre que  ensina fundamentado no seu não saber, quer dizer, o que ele  mesmo não sabe é passível e ser ensinado. Deste modo, não saber figura como preâmbulo  da construção do saber  do aluno que utiliza-se do seu apanágio para construir com seus próprios recursos  as prerrogativas e mecanismos de aprendizagem.

             Indubitavelmente, este modelo rompe com preceitos tradicionais antigos mediados pelo padrão socrático de ensino no qual o  conhecimento é um objeto de repasse que só ocorre no momento que o mestre  o entrega ao seu aluno da mesma   maneira conforme foi originalmente gerado. Para metaforizar o pensamento embrutecedor designando-o atribuições e princípios norteadores Rancière emprega a alcunha  “O Velho” (p.34) que  incorpora e personifica mentes retrógradas e embrutecedoras praticantes do pensamento estanque, sem fluidez que desfavorece a  criatividade imprescindível para o aprendizado legítimo.  Para   Rancière e Jacotot   criatividade e aprendizagem estão  inextrincavelmente associadas, quer seja, sem um processo criativo, não acontece a aprendizagem que só pode ser formulada pela elaboração criativa do próprio aluno.

            Rancière apropria-se do paradigma de  Jacotot  comparando-o com mestres de padrão establishment, do qual    Sócrates, uma das principais vozes do racionalismo ocidental é seu maior representante prático e teórico. Para Rancière, o modelo professoral socrático é de viés autoritário e  Jacotot vai na contramão de Sócrates para denunciar que sua  suntuosidade pedagógica não é emancipatória, mas  embrutecedora por excelência, haja vista que elabora  uma mise-en-scène em que o aprendiz  é confrontado com suas dificuldades,  lacunas e aporias embutidas no seu discurso que o mantém dentro da impossibilidade objetiva de obter resposta para uma determinada indagação filosófica.  Deste modo, o conhecimento filosófico  permanece retido no seu transmissor, o único que  lida com ele de modo dinâmico. Jacotot  sublinha que  o método embrutecedor consiste precisamente nesta sequência nutrida por papéis que de um lado e de outro não efetivam a razão de existir do saber que é criar um vórtice no qual todos se apropriam dele sem jogos de poder que interditam ou deprimem a potência criativa do agir individual ou coletivo.

        Paulo Freire classifica este tipo de educação de  bancária que consiste no depósito do saber que em seguida é submetido à inércia ou inatividade no local depositado. Para o autor é um padrão de  educação burguesa que cultua a transmissão passiva constantemente revitalizada pelo a priori de um tudo sabe e outro que nada sabe. A pedagogia Jacototiana  anarquiza e inverte  essa lógica. Não    é mais um aluno sujeitado à vontade do  professor, cuja  autoridade e poder   são abolidos dissolvendo a desigualdade que os mantém. Agora a relação é de inteligência para inteligência.

Implicações da leitura  aprofundada de Jacques Rancière

            Realizar uma leitura da proposta pedagógica de Jacques Rancière culmina na leitura de uma   contexto global, tendo em conta os inúmeros fatores que as proposições de seu pensamento atravessa.   A pedra angular do filósofo não habita fronteiras, já que  profundamente enraizada em um campo prático que tem por objetivo a liberdade  intelectual e a emancipação apresentadas por ele na tentativa de  esboçar uma aproximação entre pedagogia e igualdade. As diretrizes da sua abordagem oferece conceitos e hipóteses que buscam responder impasses albergados em inúmeros domínios do conhecimento, porque  particularmente localizado no cruzamento da filosofia política, pedagogia e filosofia da arte, razão pela qual tem sido um dos filósofos mais discutidos.  As mesas de debate o consideram um  observador privilegiado de questões que podem tocar desde a criação artística até abordagens políticas que avançam para terrenos que, inclusive, ultrapassam a filosofia. 

            Ao examinar a obra "O mestre ignorante" de Jacques Rancière o leitor se depara com o trabalho de um  filósofo  objetivo e convicto de sua posição filosófica e é exatamente esta feição que  faz com que seus pensamentos apresentem  pontos de convergência e divergência em relação aos seus pares.

            Contudo, para além das  especificidades de sua filosofia, é digno de nota sua  reflexão sobre as habilidades filosóficas e estéticas que podem ser desenvolvidas por qualquer indivíduo que pode valer-se de um processo autodidata para educar a si mesmo. Este paradigma  aparece no  horizonte como atributo  quase incomum se comparado com outras bases teóricas de construídas por pensadores  de similar envergadura. Neste sentido, cabe dizer que é um  desafio singular  examinar a relevância do trabalho do filósofo, cuja validade de seus interesses filosóficos apoia-se na emancipação das  habilidades críticas e estéticas dos indivíduos, dentre os quais estão inclusos os aprendizes ou alunos. Obiols (2002, p. 77) discorre sobre a leitura crítica do conteúdo filosófico que explora esta natureza de ensino:

(...) aprender a filosofar só pode ser feito estabelecendo um diálogo crítico com a filosofia. Do que resulta que se aprende a filosofar aprendendo filosofia de um modo crítico, quer dizer, que o desenvolvimento dos talentos filosóficos de cada um se realiza pondo-os à prova na atividade de compreender e criticar com a maior seriedade a filosofia do passado ou do presente (...). Kant não é um formalista que preconiza que se deve aprender um método no vazio ou uma forma sem conteúdo; tampouco se segue que Kant tivesse avalizado a idéia de que é necessário lançar-se a filosofar sem mais nem muito menos a idéia de que os estudantes deveriam ser impulsionados a ‘pensar por si mesmos’, sem necessidade de se esforçar na compreensão crítica da filosofia, de seus conceitos, de seus problemas, de suas teorias etc.

 Emancipação como pressuposto para criação de significados

            Rancière (2010, p.27) discorre que as  matrizes do conceito de  emancipação tem origem na  lei romana significando  “libertar um filho ou esposa da autoridade pater familias, o pai da família”. Nesta correspondência  o sujeito, objeto do processo,  é liberto na  emancipação. O autor retoma a evolução hstórica para indicar algumas transformações na carga semântica do termo: no século XVII, por exemplo,  emancipação estava  associada com tolerância religiosa e no seguinte com  a libertação do  escravos. Ao passo que  no século  XIX  emancipação estava intrinsecamente relacionada com liberdade de  mulheres e dos trabalhadores.

            No século XVIII o conceito de emancipação ganha novas feições com o o iluminismo  quando  passou refletir na  educação, especialmente pela influência dso pensmentos  Kantianos. Kant ofereceu duas colaborações que merecem destaque. A primeira é a predição de que a liberdade de pensamento é herança da natureza humana, portanto inata, não consiste em  contingentes históricos conjecturados  por vocação ou prosperidade.   A segunda contribuição  deduz que somente a  educação torna um  homem em humano.  Sendo  assim,  iluminismo e emancipação se alinham. Contudo, Rancière (2010) adverte que se mal utilizada por algum sistema ideológico, esta visão num átimo de  conversão teórica tende desembocar em atos  extremos como  nazismo ou fundamentalismo. Todd (2009) diverge do olhar kantiano, pois contempla a  educação  enquanto espaço de reflexão, perguntas e respostas   sobre nosso comprometimento e envolvimento   com as questões da   alteridade.

Outra importante vertente, a educação crítica, interpretada sob a luz das teses  marxistas ou neo-marxistas,  entende emancipação como meio para analisar  as teorias e práticas das  estruturas opressivas,  práticas.  Esta vértice converge para o pensamento  de que  “para nos libertarmos dos trabalhos do poder, precisamos expor como o poder opera em nossas consciências” (RANCIÈRE, 2010, p. 30).  Visto por esta lente, o emancipado é incapaz de assimilar o aparato ideológico ou como os dispositivos de poder pode atuar a partir dele e tampouco os métodos utilizados  que as ideologias criam para moldar e manipular  consciências subordinando-as ao poder vigente.

            Uma breve revisão do histórico da educação formal atesta que as pedagogias, didáticas e métodos de ensino sempre priorizaram a supremacia explicação que, por consequência hierárquica, está associada com a soberania do saber do docente (Freire, 1996). Este método, por seu caráter hegemônico por natureza é considerado tradicional centrado nas referências professorais que presume o detentor de um saber transmitido por meio de explicações àqueles que ignoram esse saber, portanto, os ignorantes.  Jacotot, conjectura que no interior do método respira e se alimenta um mito pedagógico, para quem o saber e a compreensão são legitimados somente pela chancela do mestre. Neste sentido, é coerente concluir que a premissa intrincada é que o aprendizado só é possível pela explicação de um detentor do conhecimento.  Temos neste protótipo um esquema de submissão que resguarda uma escalada organizada pelo conjunto de hipóteses que criaram os paradigmas mestre versus ignorante, capaz e incapaz que traz no bojo o princípio de diversos problemas proeminentes do contexto da educação formal.

            Em termos de emancipação, liberdade e igualdade, contamos com figuras tutelares que deram suas declarações com a intenção de atribuir à escola a consistente missão de cumprir seu papel libertador, aportado na matriz igualdade, independente da inegável (re) produção das desigualdades nas quais ela participa por proposição ou distração ideológica.

Neste sentido, é válido contemplar a obra de Bourdieu e Passeron (1970), na qual os autores defendem que a escola está longe de ser um corpus isolado dentro da sociedade, mas exórdio dos interesses e valores sociais que ela reproduz e materializa por meio da manutenção e progresso do seu sistema de ensino e ações pedagógicas.  Dialogar com a obra dos respectivos autores é uma oportunidade rara de refletir sobre o papel da escola e seus atores dispostos no front aguardando a oportunidade de compor e recompor seu conjunto de forças no campo educacional e às margens dele.

            Com efeito, a emancipação parece constituir a própria essência da filosofia que a explora desde Platão, Spinoza, depois reforçada por Sartre, Kant ou Marx. A meta do homem emancipado, livre e em pé de igualdade e a rejeição de toda forma de domínio, dentre eles o intelectual, é um exercício filosófico de libertação que galga o estágio ético ou político. Indiscutivelmente, o significado de emancipação tem suas variações de filósofo para filósofo, mas possui equivalência conceitual quando se trata compreendê-la como processo que afasta o sujeito da condição primária (doxa, alienação ideológica, consciência imediata, ignorância) por intermédio do poder crítico da filosofia que desempenha um papel decisivo na sua supressão. 

            Mas os resultados trazidos pela filosofia não são ainda tão evidentes ou favoráveis conforme nos mostrou Jacques Rancière em "Les Philosophes et Ses Pauvres'' (1983), no qual o autor demonstra que a própria postura do filósofo impede a ruptura do imperativo divisório dos que sabem e os que não sabem". Em entrevista, o filósofo compreende que o poder da palavra advinda ou não do discurso filosófico define ações de desigualdade:

 

Um animal literário é aquele que tem seu destino alterado pelo poder das palavras, que altera a rota do animal social, gregário, comum. Quando há um momento politicamente forte, de certa forma a "politicidade'' deste momento está relacionada à "literariedade'', quer dizer, a essa descoberta dos sujeitos como "seres falantes'' (" êtres parlants''), do poder das palavras, o poder de tornar iguais os seres falantes. Toda a crise de consciência política forte se constitui de tomadas de consciência de seres falantes que interrompem toda a lógica da dominação, quando as palavras não têm mais a função exclusiva de designar os objetos ou de determinar ações. O animal literário escapa da normalidade pela eficácia de palavras como "igualdade'' ou "liberdade''.

 

            Pasqualatto (2011) acredita que a emancipação é a matriz para uma mudança dos paradigmas no processo de ensino aprendizagem que implica suspender as crenças que movem os modelos vigentes voltados contra a autonomia e independência intelectual conquistada através da descoberta pessoal.  Jacques Rancière recupera uma farta tradição filosófica reforçada por Jacotot para desmistificar por meios congruentes a figura do mestre. Qualquer um pode ensinar e aprender e o professor é o guia que dirige um conteúdo, portanto o ensino é universal e prossegue sem a presença do mestre.

            Tal abordagem dispõe a prática educativa no lugar que Vieira (2010) a coloca, quer seja, na posição de formadora de sujeitos autônomos, capazes de manejar seu processo de individuação auxiliado por vários atores. Por outro lado, a autora vislumbra a ressonância desta dinâmica, porque no porvir  estes sujeitos se tornam também construtores de  significações sociais porque solidamente estruturados internamente.  No momento que se servem da sua própria substância subjetiva, repertórios e significados internos constroem-se indivíduos inicialmente e a posteriori  sujeito sociais. O saber construído com autonomia  cria repercussões em toda sociedade, sendo, portanto um fenômeno subjetivo e social.  Deste modo, Vieira (2010) compreende que os  efeitos são bilaterais,  porque  existe o aluno se construindo no percurso  e também  o educador  na contrapartida que  ao assumir a emancipação em detrimento desta rede que modela o infrapoder, inescapavelmente vai se alterar.

 

 

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vida de marinheiro

Do Hermético