Os primórdios de mim
A vida e seus redemoinhos que só vamos perceber depois que somos tragados por eles. Eu em minhas noites em claro no meio do nada, cercado de água por todos os lados e sem enxergar nada à minha frente, não poderia deixar de refletir sobre como eu me tornara um ser totalmente diferente daqueles que me precederam e que me ensinaram as coisas mais básicas da vida. Meu bisavô foi dono de tropa de cavalos e burros, fazendo transporte de cargas, em um lugar totalmente distante do mar e de qualquer água mais profunda, e por ironia da vida, esse transporte era entre Argoin, e Castro Alves, esse último nome, remetendo imediatamente ao poema Navio Negreiro, cujo verso mais emblemático é “estamos em alto mar”. Ou seja, de alguma forma, tudo isso que se passou comigo e com os caminhos que escolhi para desbravar em minha vida, já estava de um modo tímido e bastante sutil, escrito em meu destino e trajetória. Castro Alves não me deixaria mentir. Nasci logo ali, e tive, por causa desse
nome do lugar de onde vieram meus antepassados, uma pista da realidade que iria me embalar e me acolher, em minha existência de tantas ondulações, ali esboçado no seu devaneio poético, no desenrolar da minha existência.
São as contradições que organizam a vida como um todo, mas de um modo bem particular ela também organizou a minha, sem que eu me desse conta disso. Meu avô lidava com tropas de cavalos, burros, tinha gado e terras, e seu sustento maior vinha justamente do transporte de carga feito pelos animais de tração, uma coisa bastante concreta, sem pensarmos na carga, nos animais, na terra batida que percorriam. E dessas imagens me vem imediatamente, sempre, a barulho dos cascos dos bichos no chão duro e pedregoso. Tudo na vida dos meus antepassados, era a firmeza e a solidez do chão e dos caminhos bem marcados por onde tanta boiada e cavalaria já havia passado. E eu nos meus caminhos fluidos e sem demarcação, eu no meu chão instável, meu leito que balançava por toda a noite, meus pensamentos que flutuavam por todo o dia. Não eram mais os cascos dos cavalos a bater mais
ainda o chão e sim o casco do navio que singrava as águas sem deixar marcas permanentes na textura do mar. Aí eu que questionava, teriam meus antepassados deixado mais legado do que eu? E a mim mesmo respondo: Cada um abre os caminhos conforme pede a sua alma.
Em se tratando de atmosfera meu nascimento não difere de muitos. Torná-lo mítico poderia caber-me, dado o momento histórico que ocorreu e suas peculiaridades de traços finos e sublimes inerentes aos tramites dos nascimentos. Decido explaná-lo aos meus porvires como sendo parecido a todos os nasceres. Aconteceu nas clássicas instâncias dos rituais de nascer: estas sendo o dentro-fora prescrito no intra-uterino, quando apenas eu e minha mãe nos embalávamos na querência germinal da unificação; a outra transparecida na ruptura deflagrada pelo extra-uterino. E posso citar que uma terceira se situava nos corações receptivos
de meus pais e a quarta numa realidade externa que ignorava completamente o frescor da nossa intimidade compartilhada nas instâncias intra e extra-uterina.
Em uma margem, era meu nascer embalado
pelos olhos sincrônicos do amor. Na outra margem, distante desta solenidade fechada na fineza dos afetos corria um mundo sob a égide iminente da segunda guerra mundial que viria irromper dos punhos humanos exatamente um ano depois.
O jornal da época, completamente alheio às sutilezas do meu surgimento, anunciava conflitos crescentes de alcance internacional. Dentre eles as notícias da eclosão dos interesses da Alemanha nazista e a tensão nas relações entre Estados Unidos e Japão. Este mundo por um fio, prestes a se dividir em micromundos estava sendo preconizado na Itália onde os judeus não podiam mais exercer o cargo de professor. Todo globo atravessado por confrontos que se assinalavam nos desacordos, acordos, nos interesses compartilhados, colididos, nas rupturas e nas alianças.
E embora reconheça a potência histórica do dia vinte e três de agosto de 1938, fiz a opção poética de não ultrapassar além destas linhas o cenário da fazenda onde nasci. Não que os protagonistas do mundo-fora não sejam relevantes. É que coube a mim, em todos os
meus dias ser-me a despeito do mundo, assim, por desdobramento preferi acomodar meu nascimento em uma perspectiva mais dócil e delicada. Porque nascer é isto: algo de doce e delicado apesar da dor do parto e dos desconcertos do mundo.
Consiste para meu peito bálsamo benigno pensar que sai do útero materno, minha zona de conforto por nove meses, para entrar naquele outro ventre gentil, a várzea onde nasceu o poeta do mar.
Não poderia relacionar, ainda que o quisesse, as gravitações das trincheiras com minha chegada. Porque, afinal, foi onde mesmo nasci, numa casa de poeta e poesia, incorporado aos acalantos dos primeiros versos que li, há cerca de 100 km de Salvador, na rua Santa Terezinha, no número 13, no dia 23 de agosto de 1938, no alto da madrugada, perto da hora morta, 02h30min, no
exato espaço, contudo em outro tempo, onde nasceu Antônio Castro Alves, Fazenda Cabaceiras, lugar que a família Alves viveu por apenas alguns anos e atualmente é um parque histórico. Se quisesse dizer em metáfora minha chegada, arriscava acertos em versos decassílabos para tecer os dois extremos das
estadas mais pungentes que tive: o útero de minha, estada interina, cerrada em certezas, fechada na proteção e blindada pela segurança do amor incondicional. A fazenda salta como signo da outra estada, o mar, estendido nas estrofes como segundo útero, que contrário ao primeiro, veio pontilhado pelo indício soberano da incerteza e da abrangência das aberturas e profundezas com as quais só o céu sem fim compete. Quis contar simbolizando porque no alcance da idade da sabedoria entendi que Deus fala pelos sinais. Soube que o dejavú diz-nos muito sobre nossas caminhadas, sobretudo aquelas que escapam das fibrilas das memórias recentes, as que não suspeitam daqueles tempos demasiado distantes. Estas camadas da existência que fogem das datas curtas agarradas
às lembranças superficiais. Narrar memórias é também tocar o imemorial e avançar para as vidas que o tempo engoliu. Adentrar terrenos que desconhecemos em nós mesmas.
No curso da narrativa entendi que conhecer-nos pode significar religar fios soltos que reconhecemos na seiva de tempos velhos. Existem histórias que nosso corpo não conta,
porque apenas o espírito pode fazê-lo. E foi por desejar que minha alma contasse minha história é que fui perseguindo os borrões que iam indicando meus próprios contornos. Porque estive lúcido de que eles dariam conta de articular as faces e nuances que ao cabo apresentariam a completa geometria de mim. Não me bastou viver sem entender, olhar sem significar, ser testemunha e agente de tantas passagens sem compreender o peso da minha participação no fenômeno. Estar onde estava fazendo o que fazia colocava-me em via-dupla onde ser-espaço estava em acordo com algo que a ambos transcendia. No silêncio do mar a gente ouve o que em terra firme não se ouve. Podemos ouvir o suspiro choroso da baleia que perdeu a cria.
Também os cochichos de Deus; das coisas que ele só segreda aqueles que correm ao alto das montanhas e a estes outros que respiram no escuro onde bate o coração do mar.
Não sou dado às antigas tradições que cerceiam a figura dos meus antepassados do mar, que a despeito de suas bravuras e tenacidades tinham grande facilidade de criar relações fundadas em superstições, mitos, lendas e crenças. Pelas oscilações entre incertezas e incertezas comuns aos homens das embarcações, aprende-se que verdade e inverdade vivem trôpegas e alternantes nas linhas tênues que dividem ambas. Ninguém de bom gosto arriscaria desmentir ou tirar provas daquilo que se conta nos cantos dos navios. As superstições náuticas que atribuem má sorte às sextas feiras 13, que proclamam as visões de monstros do mar, e reservam poderes mágicos para a moeda de prata debaixo do mastro e o furor desconfortante de mal presságios e infortúnios na debandada de todos os roedores são códigos de mar, um dicionário de símbolos construído em séculos de experiência entre céu e mar. E destas coisas que se diz nas embarcações não se fala com preconceito. O lugar do marinheiro é também um reino que existe às margens do mundo visível, material. Dos lugares onde só cabe o rigor da lógica e das tangibilidade. Ele também se move por um aglomerado de referências, transferências simbólicas, representações estritamente fechadas ao seu universo de ação, interação e solidão. Porque a vida marinha guarda o segredo de todas as coisas vivas e nela estamos abertos para criar figuras de entendimento que expliquem a existência fora do entendimento racional. Posto que um mundo suspenso e pendular, emenda-se às carnaduras doutros mistérios e revelações.
Contudo devo confessar que desde o marco zero desta narrativa dei-me conta da quantidade de vezes que o número 3 me aparece. Foi uma percepção impensada. Veio na precisa forma das epifanias, assim como se me acometesse a súbita sensação do entendimento da essência de algo. Quando dei por mim, já estava costurando relações e inteiro desatado dos grilhões do raciocínio frio. Talvez pela memória atávica herdada das histórias combinadas que ouvi das gargantas do mar, dos cascos dos navios e dos marinheiros tomados de mitos passados. Contos que nunca estaremos certos de se tratarem de eventos reais ou fictícios.
Enquanto repaginava meus primeiros cinco anos sentia a pulsação: três aqui e três ali. Feito dança E se ia repetindo nestes esboços iniciais quando da feitura deste primeiro tomo. Do que se trata? Não pude deixar de perguntar enquanto destrinchava possíveis relações entre o 3 e minha história. Embora não seja marinheiro de fortes superstições e outros misticismos, seguindo a esteira daqueles que criam símbolos e rituais na vista de justificar e amparar suas idas e vindas, flagrei-me pensando sobre as repetidas pulsações do 3 nos dados rudimentares da minha biografia. Para tanto não precisou muito, bastou que especulasse “nasci no número 13, dia 23 de 1938, numa terça feira, portanto 3° dia da semana, às 02h30, numa rua com nome de santa Terezinha, que nascera em 1873 e fora beatificada em 1923. Não fosse o bastante para ficar intrigado, descubro que Argoim, hoje município de Rafael Jambeiro, cidade localizada na Microrregião de Feira de Santana no estado do Bahia, local onde vivi meus cinco anos iniciais tem nas coordenadas do satélite a latitude 12°33'9"S e longitude 39°31'49"W, cujo padroeiro falecido no dia 13 de junho teve seu corpo trasladado para Santa Maria numa terça-feira. Os festejos da cidade ocorrem durante 13 dias. Ora, disto posso deduzir é nada se estiver amparado pelo ceticismo que apregoa que nenhuma relação existe entre os números e a existência das coisas. Também devo interpretar como mera coincidência movediça que encarrilha números esvaziados de sentido e até considerar que estes apontamentos não valem de oriente na compreensão dos diâmetros mais largos desta história. Eu me retive nisto com a mesa.
De todo modo, se durante a escrita de minhas memórias outras associações viessem não perderia de citá-las, tendo em mim que os pensamentos furtivos, destes que escapam dos limites do intelecto e das impressões moderadas pela razão podem ser de muita valia na interpretação de nós mesmos. Eles muito dizem do agrupamento de pontos que desenham as justificativas da nossa chegada aqui. Argoim na linhagem historicista das religiões é apresentada como nascedouro do grande benfeitor Monsenhor Ápio da Silva. Mas nisto não detive minha atenção, tomando em julgo que, com efeito, em todo enredo de países tradicionalmente católicos, haverá do começo ao término alguma figura religiosa relacionada ao surgimento das cidades. Sobretudo o que de Argoim reteve meu olhar resguarda-se no milagre presumido da imagem de Santo Antonio de Lisboa.
Contam os devotos dos rastros de destruição deixados pelos franceses luteranos que aportaram em Arguim, fortaleza africana entre as tantas do continente negro, de onde furtaram a imagem de Santo Antonio para em seguida levarem-na até a embarcação onde fora alvejada por zombarias, blasfêmias, vilipêndios, ultrajes e mutilada por golpes de espada. Os relatos garantem em fé que a imagem foi atirada fundo do mar e que neste mesmo dia todas as naus francesas naufragaram, tendo sido preservada apenas aquela que carregava a imagem do santo. Para espanto de todos, a
imagem foi encontrada intacta nas areias, sem nenhum arranhão. Dos tantos que presenciaram, alguns quiseram entender se algum humano houvera levado a imagem até ali no ponto em que estava e de pé. O que de pronto foi descartado, em vista de nenhuma pegada ter sido notada nas areias.
Eu, querendo amarrar sentidos aos momentos que dizem de mim, desta vez segurei a onda de divagações que me quiseram tomar pelos braços.
Permiti que a história do nome da cidade fosse apenas a história do nome da cidade sem produzir significados mais profundos em torno disto. Bem sei que poderia narrar apenas fatos, isolando-os na linha do tempo com rápidas modelagens, valendo-me de descrições para serem servidas numa bandeja de superficialidades. Sobretudo quis dizer de mim pelo que vivi, porque o evento esvaziado de mim não muito pode dizer senão de passagens que coletivizam minha experiência tirando dela o peso da minha subjetividade. Deste modo, colocando-me dentro da cena, demarcando as impressões dela capturadas. Quero que meus descendentes possam saber de mim e que isto sirva de norte em suas experiências vindouras. É pelo motivo que vou me inscrevendo a cada cena escrita, descrita.
O que nos tirou de Argoim foram razões que minha infância por sua natureza de inocência não pudera supor. Sabia entre sopros de conversas entre meu pai e minha mãe que eram as razões políticas que nos levariam até cento e cinqüenta quilômetros de distância de Argoim. Batemos em retirada para a Vila da Ibiquera no lombo de um burro. Foram aproximadas duas semanas de viagem, com minha mãe grávida de alguns meses, e nós, os quatro filhos, com menos de dez anos. O mais velho era o Antonio, que à época contava menos de oito, eu não tinha ainda completado seis e Adalice, irmã mais nova, somava dois anos apenas. Aquele era o tempo dos povoamentos, as pessoas iam e vinham tentando encontrar seu lugar no novo mundo que se apresentava desde a chegada dos portugueses. Argoim, hoje com 4.800 habitantes, era quase uma cidade capela com menos de oitenta anos de história. “Os habitantes estavam em busca de lugares conhecidos como ‘terra de oportunidade”. Almejavam ampliar seus recursos seguindo adiante para outras regiões. Vários territórios inscritos na história contam sobre os circuitos de peregrinação de onde derivam os novos povoamentos e o surgimento das cidades. Nestes anos éramos herdeiros quiméricos dos navegantes com seus sonhos de conquistas e descobrimento do novo mundo. Havia um convite permanente de se deslocar de um alugar. A peregrinação era uma mística orientada pelos mitos católicos e pelos colonizadores que invocavam uma pressão demográfica ininterrupta. Tivesse que arriscar um palpite, diria que o ímpeto de meu pai que arrastou filhos pequenos e esposa grávida por semanas no lombo de um burro é também uma experiência histórica, enaltecida política e religiosamente modelada pelos meios sociais dominantes. A comunidade Argoim, a exemplo de todas da época, estavam sendo tecidas pelos preceitos sociais políticos que desponta ao longo da conquista do território. Estes movimentos de contínuas, eram em si mesmos, os paradigmas do desenvolvimento histórico. Cabiam aos homens forjarem uma adaptabilidade ao tempo e espaço. Cada um devia criar recursos que os colocassem na posição de realizadores e constantes realizadores da unidade nacional, que constituía um dos objetivos da época. O povoamento pretendia cimentar a identidade do espaço exterior colocando a individualidade em segundo plano.
Ainda assim, existiam alguns poucos sujeitos históricos, estes, cuja maior conquista se deslocava do ambiente externo para a mudança interna. Mas para a grande maioria o alvo primário ainda era o "lugar".
Não que este conchavo pretende colocar minha história pessoal dentro da história universal. Um ajustamento entre histórias, posto que tempo e espaço regem as ações do homem e meu pai não poderia ser abundantemente diferente dos homens de sua época. O mundo conta nossa história e nossa história conta para da formação do mundo.
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